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ARTIGO EM EDIÇÃO

“Corte”, em sua definição mais simples, é “o conjunto de pessoas que cercam o príncipe”. Poderíamos ampliar, e dizer que qualquer senhor mais poderoso teria ao redor de si uma corte. Mas nem toda a “corte” pressupõe uma “sociedade de corte”. Segundo o sociólogo Norbert Elias, a “sociedade de corte” é uma figuração social específica, que surgiu na Europa – principalmente na França – no final da Idade Média, com a maior centralização do poder e a submissão dos demais poderes, devido ao monopólio que passou-se a exercer sobre “as duas fontes decisivas de poder para aqueles senhores em posição central”, isto é, as taxas e a coerção física. O apogeu dessa figuração na França aconteceu durante o reinado de Luís XIV (1638-1715), o Rei-Sol. Elias afirma: “É na corte de Luís XIV que efetivamente se forma e constitui a nova sociedade de corte. Conclui-se então definitivamente um processo que já estava em marcha havia muito tempo: os cavaleiros e os epígonos cortesãos da cavalaria tornam-se, enfim, de modo definitivo, cortesãos no sentido próprio da expressão, indivíduos cuja existência social (e com bastante freqüência, sua renda) depende de seu prestígio, de sua posição na corte e no seio da sociedade de corte.”

Está aí expressa a grande dicotomia entre o medieval e o “moderno”, para Elias: a cavalaria versus a “corte”, expressão que atingiu seu máximo com Luís XIV. Afinal, se esta figuração social começou a surgir com a progressiva centralização do poder no final da época medieval, na França, foi durante o reinado desse soberano que esse processo centralizador atingiu seu máximo. Luís XIV é considerado o grande monarca absoluto, paradigma e modelo. Como vimos, a “sociedade de corte”, no modelo ditado por Norbert Elias e aqui seguido, surgiu no século XV. Mas a “corte” em si, no seu sentido mais amplo, como espaço de interação social, é muito anterior. Afinal, mesmo na Antigüidade os poderosos eram cercados por diversas pessoas, que os atendiam e serviam. Na Alta Idade Média, Carlos Magno manteve ao redor de si uma corte “mergulhada numa atmosfera laica e guerreira”, mas que ao mesmo tempo “era um lugar de cultura e fé”, e onde resolviam-se problemas administrativos. Era composta por religiosos, como os capelães, diversos letrados, entre os mestres e os seus discípulos, incluindo jovens que eram mandados para a corte para aprender, além das mulheres. Com a fragmentação do Império Carolíngio, fragmentou-se também a sua corte, com a divisão do território por seus herdeiros. À divisão em grandes reinos, seguiu-se o processo de feudalização. Os poderes reais perderam importância, enquanto os grandes senhores deixavam de freqüentar a corte real, criando os seus próprios núcleos de convívio social em seus domínios. A corte real foi descaracterizando-se, embora a estrutura se mantivesse baseada na da corte de Carlos Magno. A grande mudança, entretanto, foi o surgimento de uma noção do bom comportamento na corte, a curialitas – origem do termo francês courtois – que passou a exigir dos cortesãos, guerreiros em sua grande maioria, “elegância”, juntamente com o valor em batalha e algum saber letrado. Foi o lugar e a época de surgimento dos torneios, que no início eram simulações de batalhas, gradualmente chegando à forma de “um contra um”, mais conhecida. Depois da grande fragmentação da Idade Média Central, teve início no século XII uma centralização progressiva, que culminaria no século XV com a consolidação do rei da França como senhor incontestável de seu território. No “processo civilizador” de Norbert Elias, “uma sociedade de guerreiros, em competição relativamente livre tornara-se uma sociedade em que a competição era restringida à maneira de um monopólio”. Essa centralização que se desenhava refletia-se nos modos de comportamento da corte. Se antes “era a atmosfera cavalheiresca que havia dominado as cortes”, agora, sem que esta se dissipasse, era “a sombra do príncipe que, cada vez mais, se impunha”. A corte que surgiu no outono da Idade Média e que deu origem à “sociedade de corte” era, portanto, uma corte principesca, já que tudo nela girava em torno da figura do príncipe. Continuava a ser um lugar misto, de piedade e, principalmente, poder. Deste último, principalmente. “A corte”, a partir do século XV, “era o teatro do príncipe”, diz Bernard Guenée. Analogia apropriada. Pois era nesse espaço de representação e de cerimônias, cada vez mais regidas por um ritual específico, que toda a glória e magnificência do príncipe deveriam surgir. Parte desse poder estava na proteção e apoio que cada príncipe daria a “todas as facetas da cultura”, como justificativa de seu poderio. As cortes tornaram-se modelos de comportamento, espalhando suas maneiras e seus ideais, por intermédio das obras nelas produzidas. Talvez um dos melhores exemplos, embora posterior ao nosso objeto de estudo, seja a obra de Baldassare Castiglioni, O Cortesão, obra da primeira década do século XVI. Verdadeiro “espelho” para o homem de corte, “(...) ele pintava o retrato do verdadeiro cortesão. Este era reconhecido por sua maneira de caminhar, lutar e fazer exercícios físicos, vestir-se e dançar, tocar música e pintar, por sua maneira de falar, rir, gracejar, conversar, fazer a corte às mulheres, amar; por sua maneira de se apresentar diante do príncipe e se dirigir a ele. Mas o verdadeiro cortesão devia sobretudo ‘servir perfeitamente os príncipes em tudo o que for razoável, para obter seu favor e o elogio dos outros’.”

Vemos que a essência dessa nova corte expressava-se no serviço ao príncipe. Portanto, se a “corte”, no seu sentido mais lato, já existia muito antes da “sociedade de corte”, é a partir do século XV, com a “formação dos Estados Nacionais”, que começou a tornar-se estrutura central do governo. Cabe discutir porque podemos usar o termo “sociedade de corte” para o nosso objeto de estudo. Norbert Elias, ao descrever a “sociedade de corte”, não se preocupa em definir as formas anteriores de organização cortesã. Seu modelo explicativo baseado principalmente na corte francesa dos séculos XVII e XVIII serve, em sua teoria do “processo civilizador”, como referência para as formações anteriores de maneira comparativa: estas seriam menos ritualizadas, menos hierarquizadas, menos refinadas. A “sociedade de corte” difere-se das demais formas de organização social – como a “sociedade feudal” e a “sociedade industrial” – por organizar-se em torno da figuração social da corte. A corte seria o “órgão mais representativo” e a matriz dessa sociedade, aquele com maior influência: o tipo humano determinante em tal sociedade seria o “cortesão”. Está aí, de acordo com Norbert Elias, a diferença entre a “sociedade de corte” e as demais formas sociais que também possuíam a corte dentro de si. Como indicamos no início do capítulo anterior, ao pensar-se em Idade Média e feudalismo a primeira imagem que surge é a do cavaleiro, enquanto que, ao pensarmos no Ancién Régime somos imediatamente levados a pensar no cortesão, que “é, juntamente com o humanista e o príncipe, uma das figuras sociais do Renascimento que nos são mais familiares.”

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